De tudo que se
tem visto, nada mais excede em beleza que o corpo imensurável da Criação
divina, consumada em seis dias, cuja contemplação nos faz captar, no instante
de um momento, o estro do salmista Davi:
“Os
céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.
Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não
há linguagem, nem palavra, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda
a terra se faz ouvir, e as suas palavras até aos confins do mundo.” (Sl 39.1–4)
Com que propósito tudo
isso foi realmente feito?
·
Para que a criatura humana
estime o melhor lugar que Deus, com todo amor, lhe deu;
·
reconheça com gratidão o
seu valor;
·
dele cuide com senso de
responsabilidade;
·
e goze sempre com prazer as
primícias desse ditoso bem.
Nessa linha de
pensamento, lembremos que o profeta Abraão foi convidado por Deus a contemplar
miríades de estrelas — e, por descortino, desafiado a contá-las, para assim
calcular quantos de seus descendentes iriam povoar a futura nação de Israel.
“Abraão
creu no Senhor, e isso lhe foi creditado por justiça.” (Rm 4:3)
Com esse gesto
paradigmático, ele nos convida a seguir seus passos — passos movidos por linhas
de propósito, cadência da esperança e ânimo da fé.
A despeito da ação
predatória do homem sobre os bens da natureza, ainda é possível observar, no
espectro do planeta Terra, que tempo e espaço revelam expressões de mútua
estima. Por esse exemplo, a humanidade pode — e deve — aprender a conviver em
sábia paz. Com generosa predisposição, iniciativa e atração sugestiva, o corpo
do universo físico e toda a sua cobertura vegetal se expõem a pintores e
escultores como modelo ambiental gracioso e perfeito. Assim também se apresenta
a exuberância hídrica do planeta Terra.
Daí, por sua mão e
estro, o tempo pode revelar-se às sucessivas gerações como, por exemplo, um
grande escultor — título, aliás, de um belo texto da escritora Marguerite
Yourcenar. Porém, nem sempre percebemos, face a face, os aspectos desse
mistério. Em seu encantador livro Mantendo um Olho Aberto, Julian Barnes
confessa:
“Eu
mesmo não entendia — ainda não conseguia enxergar — que, em todas as artes, há
normalmente duas coisas acontecendo ao mesmo tempo: o desejo de fazer o novo
e um diálogo contínuo com o passado. Todos os grandes inovadores olham para
os anteriores, para aqueles que lhes deram a permissão para seguir adiante e
fazer de outro modo. E as homenagens a precursores, em forma de pintura, são um
tropo presente.”
Coube ao grande líder
Moisés enriquecer a literatura bíblica com um único salmo de profundo apelo
existencial, no qual, em favor de seu povo, clamou ao Senhor Deus:
“Ensina-nos
a contar os nossos dias de tal maneira que alcancemos corações sábios.” (Sl
90:12)
Moisés enfrentava a
imensa missão de conduzir milhares de israelitas por quarenta anos de jornada,
iniciada com a travessia do Mar Vermelho e estendida por um longo e árduo
caminho pelo deserto. Essa marcha, marcada por provações e milagres, culminaria
em batalhas decisivas que antecederiam a conquista da tão esperada Terra
Prometida.
Neste salmo, Moisés nos
faz perceber que ele e seus companheiros estavam no ponto culminante da
promessa que Jeová fez ao “pai da fé” – Abraão, o patriarca Abraão. Faz-nos
imaginar que seu texto foi inspirado enquanto contemplava as mesmas estrelas
que testemunharam aquele encontro maravilhoso. O brilho desse cenário nos
remete ao encantamento do verso de Fernando Pessoa:
“O
homem e a hora são um só / Quando Deus faz e a história é feita.”
Afinal, este é o
segredo do estado da arte:
“Falava
o Senhor a Moisés face a face, como quem fala a seu amigo.” (Êx 33:11)
Nas lidas práticas da
vida, o verbo contar, designado por Moisés, é mais aplicado com
conotação aritmética, visando soma, subtração, multiplicação e divisão do tempo
— desde milênios até frações de segundos. Tal tendência talvez se explique pela
força da noção de finitude: essa marca determinante e iniludível da condição
humana, contra a qual, mesmo inconscientemente, o ser existente, avesso a
perdas, adota recursos de recusa e fuga.
Ademais, o
verbo contar denota um aspecto muito positivo, verazmente proveitoso,
próprio de um viver envolto por esperança de melhores dias, com os quais desde
já se quer contar. O próprio Deus, Senhor da vida, sabe quanto sua criatura
preza o valor da longevidade, e assim a concede como prêmio por soberana
vontade — mais ainda àqueles que o temem e servem.
Nesse sentido,
Ele próprio se admirou de Salomão lhe ter rogado, logo no início do seu
reinado, tão somente “entendimento para discernir o que é justo”; sem escolher
ou rogar maior longevidade, ou qualquer outro bem que lhe foi facultado como
oferta franca e ilimitada:
“Pede
o que queres que eu te dê” (2Rs 3:5)
Conclusão: a
decisão divina centrou-se no estrito pedido, mas desbordou por concessão
complementar:
“Eis
que faço segundo as tuas palavras: dou-te coração sábio e inteligente... e
prolongarei os teus dias.” (vs. 12–13)
Note-se, pela própria
construção da frase anterior, que a palavra sabedoria guarda primazia da
citação em relação à palavra que se lhe segue — inteligência (relevante
faculdade mental). Além de ser uma dádiva de Deus, “que a todos dá,
liberalmente” (Tg 1:5), a sabedoria se impõe como dotação intelectiva revestida
de elementos de caráter ético que se irradiam após nutrição no âmbito social, e
se aperfeiçoam no seio espiritual, onde ela, como prova de desenvolvimento:
1.
Estima o que é bom e
verdadeiro
2.
Cultiva e aplica
sentimentos santos
3.
Enfim, capacita o indivíduo
a discernir o que é justo — exatamente aquilo que o coração do novo rei Salomão
idealizava em seu sábio pedido
Para melhor
entendimento dessa questão, vale lembrar, à luz de fatos correntes, o
comportamento desastrado de políticos extremamente inteligentes, portadores de
ilustres títulos universitários, porém tão pobres em sabedoria. Até porque já
sabemos que a soberba — que “precede a ruína” — assalta com danos a
inteligência, não à sabedoria.
Pois bem,
atendido por Deus, o rei Salomão nos legou grande número de seus provérbios,
pelos quais podemos saber o que é indispensável para percorrermos com brilho a
vereda dos justos.
✨
Conclusão: A Arte de Contar os Nossos Dias
Creio que as
imagens ideativas apresentadas no início do presente texto encontram melhor
moldura em fatos bíblicos que envolvem a presença de Jesus Cristo. Um deles nos
revela que é possível contar mais mostrando aparentemente menos, ou
ainda, multiplicar o significado de um simples gesto — que por si só
desvenda o postulado de virtude própria de um coração verdadeiramente sábio: a
generosidade.
“Assentado
diante do gazofilácio, observava Jesus como o povo lançava ali o dinheiro. Ora,
muitos ricos depositavam grandes quantias. Vindo, porém, uma viúva pobre,
depositou duas pequenas moedas correspondentes a um quadrante. E, chamando os
seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta viúva pobre depositou
no gazofilácio mais do que o fizeram todos os ofertantes. Porque todos eles
ofertaram do que lhes sobrava; ela, porém, da sua pobreza deu tudo quanto
possuía, todo o seu sustento.” (Mc 12:42–43)
Eis um dia a ser
contado sempre por corações sábios — contado também àqueles “que não viram e
creram”. Jesus viu duas pequenas moedas em tesouro encastelado numa alma
aparentemente simples; milagre que não estava ao alcance das mãos do rei Midas.
Sentindo-se em
desvantagem com o poder limitante do tempo sobre a vida humana, o poeta Carlos
Drummond de Andrade houve por bem desconsiderar o papel prepotente que a
mitologia concedeu às Parcas. Preferiu submeter-se à fórmula freudiana que
implica dois mecanismos de defesa do Eu: racionalização e projeção. Percebam
isso e sintam com delícia a graça de sua chistosa poética:
“Quem
teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um
indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da
exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os
pontos. Aí entra o milagre da renovação, e tudo começa outra vez, com outro
número e outra vontade de acreditar que daqui em diante tudo vai ser
diferente.”
Mas esse sortilégio
temporal contemplaria a beleza da Medusa, da qual só 15 dos 147 náufragos se
salvaram após lutarem por 30 dias contra a morte? Com respeito que ameniza a
dor, o famoso pintor Géricault dedicou três dos seus anos para transformar a
tragédia em arte.
Por sua vez, o
poeta Fernando Pessoa nos convida com prece:
“E
outra vez conquistemos a distância /-- do mar, ou outra, mas que seja nossa.”
À vida, pois, melhor
destino: o porto da eternidade.
🕰️
Epílogo: Como lidar bem com o tempo?
Eis a questão
desafiante, cuja resposta convincente deve proceder de um coração sábio —
dádiva divina pela qual nos habilitamos por bem contar os dias. Quer
somando, subtraindo, multiplicando ou dividindo, o tempo deve ser destinado:
· A si mesmo, com propósito
· Ao próximo, com compaixão
· Aos listados por Jesus Cristo, com amor: os famintos, os
sedentos, os forasteiros, os nus, os enfermos, os presos
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No entanto, lembre-se de juntar Cl 3:17 com 1 Co 10:31 :
devemos tudo fazer para a glória de Deus e em nome de Jesus! Deus o abençoe.