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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A ARTE DE CONTAR OS DIAS

 


A história das artes coleciona, por milênios, as mais representativas peças de pintura e poesia, peças que vivem a encantar olhos, corações e mentes da humanidade; elas se tornaram célebres e, ainda hoje, buscam perfeita interpretação. Portanto, não seria exagero dizer-se que a relíquia dessas obras permanece nas paredes do tempo para cumprir missão inacabada: relançar entre gerações o repto da imortal Esfinge de Tebas: Decifra-me ou te devoro. 

           De toda a sorte, de tudo que se tem visto nada mais excede em beleza que o corpo imensurável da Criação divina, consumada em seis dias; cuja contemplação nos faz captar, no instante de um momento, o estro do salmista Davi: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem palavra, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz  ouvir e as suas palavras até aos confins do mundo” (Sl 39.1-4).  Com que propósito tudo isso se fez? Para que a criatura humana saiba interpretar o dom do Amor Divino, e o goze para sempre – mais ainda após identificar no Jardim das Oliveiras o corpo de Jesus Cristo, filho do Deus Altíssimo, ferido pelas transgressões humanas.

         Do ponto de vista poético, o tempo é a tela da vida; em seu seio o ser humano é desafiado a expor a arte de encontrar, esperar e realizar o que aspira de si e para si mesmo – como expressões objetivas do que é belo, bom, e verdadeiro – para social e mais amplo proveito. Nesse sentido, o profeta Moisés, em rasgo de salmo poético (Sm 90.13), buscou inspiração auspiciosa na eternidade do seu Deus, e, em nome do seu povo, assim clamou: “Ensina-nos a contar os nossos dias para que alcancemos coração sábio.” Ele cumpria a gigantesca tarefa de liderar a marcha de milhares de israelitas ao longo de 40 anos: a contar de início a travessia do Mar Vermelho, o sacrificante  percurso pelo deserto, e, por fim, a conquista da Terra Prometida. Milênios após, o poeta Castro Alves – em luta contra a marcha pressurosa do seu próprio tempo, exclamou: “Eu não quero lauréis, quero as rosas da infância”! Morreu aos 24 anos.

          De modo comum, o verbo contar, utilizado por Moisés, é mais aplicado em termos aritméticos, visando a soma e multiplicação de dias; tal tendência talvez se explique por força da inexorável noção de finitude, contra a qual, mesmo inconscientemente, o ser humano – avesso a perdas --  adota recursos velados de vãs recusa e fuga. O próprio Deus, Senhor da vida, sabe quanto sua criatura preza o valor da longevidade, pois a concede, por soberana vontade, a muitos dos que o temem e servem. Nesse sentido, Ele próprio se admirou de Salomão lhe ter rogado, logo no início do seu reinado, tão somente “entendimento para discernir o que é justo”; não a rara longevidade, ou qualquer outro bem que lhe foi facultado como oferta franca e ilimitada: “Pede o que queres que eu te dê” (2Rs 3.5). Conclusão: a decisão divina foi referenciada na dimensão temporal; porém, centrou-se em escala  qualitativa: “Eis que faço segundo as tuas palavras: dou-te coração sábio e inteligente, de maneira que antes de ti não houve teu igual, nem depois de ti o haverá” (v. 12).

          As imagens apresentadas no início do presente texto encontram melhor moldura em exemplares fatos bíblicos, diante dos quais fica claro que podemos contar mais mostrando aparentemente menos. Um deles desvenda o postulado da virtude: “Assentado diante do gazofilácio, observava Jesus como o povo lançava ali o dinheiro. Ora, muitos ricos depositavam grandes quantias. Vindo, porém, uma viúva pobre, depositou duas pequenas moedas correspondentes a um quadrante. E, chamando os seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram todos os ofertantes. Porque todos eles ofertaram do que lhes sobrava; ela, porém, da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento” (Mc 12:41-44). Eis um dia de milagre, a ser contado por corações sábios: aos olhos dos “que não viram e creram”, Jesus transformou duas pequenas moedas em tesouro engastado num´alma aparentemente simples; milagre que não estava ao alcance das mãos de Midas.

         No curioso circuito de ideias, voltemos à poesia para encontrar lindos e instigantes versos de Carlos Drummond de Andrade, mui a propósito daqueles que tentam “alcançar coração sábio” – por meio do fracionamento do seu tempo: “Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui em diante tudo vai ser diferente”.  Sim, para tanto é preciso crer que “há tempo para tudo”; que a arte de viver implica saber lidar com os fios do dia-a-dia. Assim, com estilo do amor, “o modo de fazer é ser”.

         Ser ou ter? Eis a questão, cuja resposta procede de coração sábio – dádiva divina, pelo qual seremos capazes de contar: -- quer somando, multiplicando ou dividindo disponível tempo com quem precisa de alguém que queira escutar; com os próximos listados por Jesus Cristo: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, presos.

Autor, em 01.01.2022: Antonio Magno Figueira Netto