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sábado, 16 de agosto de 2025

A Arte de Contar os Nossos Dias (Magno Abraão)


A história das artes coleciona, por milênios, as mais representativas peças de pintura, escultura, poesia e música — peças que vivem a encantar olhos, corações e mentes da humanidade. Entre tantas, muitas se tornaram célebres, imorredouras e, ainda hoje, buscam imaginativa, prazerosa e, talvez, perfeita interpretação. Portanto, não seria exagero dizer-se que a relíquia dessas obras permanece nas paredes do tempo para cumprir missão inacabada: relançar entre gerações o repto da imortal Esfinge de Tebas — Decifra-me ou te devoro.

De tudo que se tem visto, nada mais excede em beleza que o corpo imensurável da Criação divina, consumada em seis dias, cuja contemplação nos faz captar, no instante de um momento, o estro do salmista Davi:

“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem palavra, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir, e as suas palavras até aos confins do mundo.” (Sl 39.1–4)

Com que propósito tudo isso foi realmente feito?

·     Para que a criatura humana estime o melhor lugar que Deus, com todo amor, lhe deu;

·     reconheça com gratidão o seu valor;

·     dele cuide com senso de responsabilidade;

·     e goze sempre com prazer as primícias desse ditoso bem.

Nessa linha de pensamento, lembremos que o profeta Abraão foi convidado por Deus a contemplar miríades de estrelas — e, por descortino, desafiado a contá-las, para assim calcular quantos de seus descendentes iriam povoar a futura nação de Israel.

“Abraão creu no Senhor, e isso lhe foi creditado por justiça.” (Rm 4:3)

Com esse gesto paradigmático, ele nos convida a seguir seus passos — passos movidos por linhas de propósito, cadência da esperança e ânimo da fé.

A despeito da ação predatória do homem sobre os bens da natureza, ainda é possível observar, no espectro do planeta Terra, que tempo e espaço revelam expressões de mútua estima. Por esse exemplo, a humanidade pode — e deve — aprender a conviver em sábia paz. Com generosa predisposição, iniciativa e atração sugestiva, o corpo do universo físico e toda a sua cobertura vegetal se expõem a pintores e escultores como modelo ambiental gracioso e perfeito. Assim também se apresenta a exuberância hídrica do planeta Terra.

Daí, por sua mão e estro, o tempo pode revelar-se às sucessivas gerações como, por exemplo, um grande escultor — título, aliás, de um belo texto da escritora Marguerite Yourcenar. Porém, nem sempre percebemos, face a face, os aspectos desse mistério. Em seu encantador livro Mantendo um Olho Aberto, Julian Barnes confessa:

“Eu mesmo não entendia — ainda não conseguia enxergar — que, em todas as artes, há normalmente duas coisas acontecendo ao mesmo tempo: o desejo de fazer o novo e um diálogo contínuo com o passado. Todos os grandes inovadores olham para os anteriores, para aqueles que lhes deram a permissão para seguir adiante e fazer de outro modo. E as homenagens a precursores, em forma de pintura, são um tropo presente.”

Coube ao grande líder Moisés enriquecer a literatura bíblica com um único salmo de profundo apelo existencial, no qual, em favor de seu povo, clamou ao Senhor Deus:

“Ensina-nos a contar os nossos dias de tal maneira que alcancemos corações sábios.” (Sl 90:12)

Moisés enfrentava a imensa missão de conduzir milhares de israelitas por quarenta anos de jornada, iniciada com a travessia do Mar Vermelho e estendida por um longo e árduo caminho pelo deserto. Essa marcha, marcada por provações e milagres, culminaria em batalhas decisivas que antecederiam a conquista da tão esperada Terra Prometida.

Neste salmo, Moisés nos faz perceber que ele e seus companheiros estavam no ponto culminante da promessa que Jeová fez ao “pai da fé” – Abraão, o patriarca Abraão. Faz-nos imaginar que seu texto foi inspirado enquanto contemplava as mesmas estrelas que testemunharam aquele encontro maravilhoso. O brilho desse cenário nos remete ao encantamento do verso de Fernando Pessoa:

“O homem e a hora são um só / Quando Deus faz e a história é feita.”

Afinal, este é o segredo do estado da arte:

“Falava o Senhor a Moisés face a face, como quem fala a seu amigo.” (Êx 33:11)

Nas lidas práticas da vida, o verbo contar, designado por Moisés, é mais aplicado com conotação aritmética, visando soma, subtração, multiplicação e divisão do tempo — desde milênios até frações de segundos. Tal tendência talvez se explique pela força da noção de finitude: essa marca determinante e iniludível da condição humana, contra a qual, mesmo inconscientemente, o ser existente, avesso a perdas, adota recursos de recusa e fuga.

Ademais, o verbo contar denota um aspecto muito positivo, verazmente proveitoso, próprio de um viver envolto por esperança de melhores dias, com os quais desde já se quer contar. O próprio Deus, Senhor da vida, sabe quanto sua criatura preza o valor da longevidade, e assim a concede como prêmio por soberana vontade — mais ainda àqueles que o temem e servem.

Nesse sentido, Ele próprio se admirou de Salomão lhe ter rogado, logo no início do seu reinado, tão somente “entendimento para discernir o que é justo”; sem escolher ou rogar maior longevidade, ou qualquer outro bem que lhe foi facultado como oferta franca e ilimitada:

“Pede o que queres que eu te dê” (2Rs 3:5)

Conclusão: a decisão divina centrou-se no estrito pedido, mas desbordou por concessão complementar:

“Eis que faço segundo as tuas palavras: dou-te coração sábio e inteligente... e prolongarei os teus dias.” (vs. 12–13)

Note-se, pela própria construção da frase anterior, que a palavra sabedoria guarda primazia da citação em relação à palavra que se lhe segue — inteligência (relevante faculdade mental). Além de ser uma dádiva de Deus, “que a todos dá, liberalmente” (Tg 1:5), a sabedoria se impõe como dotação intelectiva revestida de elementos de caráter ético que se irradiam após nutrição no âmbito social, e se aperfeiçoam no seio espiritual, onde ela, como prova de desenvolvimento:

1.        Estima o que é bom e verdadeiro

2.        Cultiva e aplica sentimentos santos

3.        Enfim, capacita o indivíduo a discernir o que é justo — exatamente aquilo que o coração do novo rei Salomão idealizava em seu sábio pedido

Para melhor entendimento dessa questão, vale lembrar, à luz de fatos correntes, o comportamento desastrado de políticos extremamente inteligentes, portadores de ilustres títulos universitários, porém tão pobres em sabedoria. Até porque já sabemos que a soberba — que “precede a ruína” — assalta com danos a inteligência, não à sabedoria.

Pois bem, atendido por Deus, o rei Salomão nos legou grande número de seus provérbios, pelos quais podemos saber o que é indispensável para percorrermos com brilho a vereda dos justos.

✨ Conclusão: A Arte de Contar os Nossos Dias

Creio que as imagens ideativas apresentadas no início do presente texto encontram melhor moldura em fatos bíblicos que envolvem a presença de Jesus Cristo. Um deles nos revela que é possível contar mais mostrando aparentemente menos, ou ainda, multiplicar o significado de um simples gesto — que por si só desvenda o postulado de virtude própria de um coração verdadeiramente sábio: a generosidade.

“Assentado diante do gazofilácio, observava Jesus como o povo lançava ali o dinheiro. Ora, muitos ricos depositavam grandes quantias. Vindo, porém, uma viúva pobre, depositou duas pequenas moedas correspondentes a um quadrante. E, chamando os seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram todos os ofertantes. Porque todos eles ofertaram do que lhes sobrava; ela, porém, da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento.” (Mc 12:42–43)

Eis um dia a ser contado sempre por corações sábios — contado também àqueles “que não viram e creram”. Jesus viu duas pequenas moedas em tesouro encastelado numa alma aparentemente simples; milagre que não estava ao alcance das mãos do rei Midas.

Sentindo-se em desvantagem com o poder limitante do tempo sobre a vida humana, o poeta Carlos Drummond de Andrade houve por bem desconsiderar o papel prepotente que a mitologia concedeu às Parcas. Preferiu submeter-se à fórmula freudiana que implica dois mecanismos de defesa do Eu: racionalização e projeção. Percebam isso e sintam com delícia a graça de sua chistosa poética:

“Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação, e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui em diante tudo vai ser diferente.”

Mas esse sortilégio temporal contemplaria a beleza da Medusa, da qual só 15 dos 147 náufragos se salvaram após lutarem por 30 dias contra a morte? Com respeito que ameniza a dor, o famoso pintor Géricault dedicou três dos seus anos para transformar a tragédia em arte.

Por sua vez, o poeta Fernando Pessoa nos convida com prece:

“E outra vez conquistemos a distância /-- do mar, ou outra, mas que seja nossa.”

À vida, pois, melhor destino: o porto da eternidade.

🕰️ Epílogo: Como lidar bem com o tempo?

Eis a questão desafiante, cuja resposta convincente deve proceder de um coração sábio — dádiva divina pela qual nos habilitamos por bem contar os dias. Quer somando, subtraindo, multiplicando ou dividindo, o tempo deve ser destinado:

·     A si mesmo, com propósito

·     Ao próximo, com compaixão

·     Aos listados por Jesus Cristo, com amor: os famintos, os sedentos, os forasteiros, os nus, os enfermos, os presos